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Fome!

Texto base:

“Como a corça anseia por águas correntes, a minha alma anseia por ti, ó Deus. A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo. Quando poderei entrar para apresentar-me a Deus?” (Sl 42.1,2)

Introdução

            Essa mensagem nasceu nos bancos da igreja onde congrego, em um culto normal, onde uma irmã chamada Mercedes, em seu testemunho, após a festividade do Círculo de Oração, disse que Deus a havia mostrado uma mesa posta com um banquete inigualável, muito bonita e adornada, e então lhe teria dito: “Aproveite, sente e coma, fiz tudo para você”. Quando ouvi isso, fiquei pensando na hora: “Como assim, a pessoa é convidada para um banquete e nem sequer se assenta para comer? O que faríamos se tivéssemos uma atitude dessa”? A resposta veio como uma flecha ao meu coração: “O problema é a falta de fome e a falta de sede da presença de Deus”. Aquietei triste, pois esse sintoma é muito mais comum do que imaginamos. Na verdade, acredito que esse é o mal que assola a igreja evangélica brasileira atualmente. Em sua maioria, estão empanzinados com qualquer coisa, até mesmo religião, mas não com o pão da vida que desceu do Céu; não com a fonte de água viva que salta para a vida eterna. Infelizmente.  

            Deus me deu um insight quando meditava sobre essas coisas. Analisando os relatos dos evangelistas sobre as Boas-Novas de Jesus Cristo, saltou aos meus olhos, chamou a minha atenção, um detalhe que até então me tinha passado despercebido. Parece que durante o ministério terreno de Jesus, mais pessoas não religiosas tocavam a eternidade do Reino de seu Pai, entendiam a respeito das coisas espirituais, do que de pessoas religiosas e autoridades eclesiásticas de sua época. A mim parece que a espiritualidade estava mais visível e próxima de gente perdida e quebrada do que de gente religiosa e com aparência reverente. Que os religiosos do 1º século eram, em sua maioria, hipócritas, eu sempre soube, e ainda é assim hoje; mas que gente quebrada entendia mais e melhor os segredos da eternidade, ainda que em condição deplorável, foi uma grande descoberta. Precisamos tomar o devido cuidado de não confundir o que Deus faz por nós, do que o que fazemos por Ele, da busca da pessoa e não dos benefícios, o Deus das bênçãos, em vez das bênçãos de Deus.

Aplicação

            O salmista, seja ele dos filhos de Corá, seja o rei Davi, está em exílio, longe de sua casa, longe de Jerusalém, e, principalmente, longe do Templo/Tabernáculo. E isso está acabando com o seu coração. Ele sente saudades. Ele está com a alma seca, ele quer ir ao templo/tabernáculo, lugar onde Deus habita, onde a presença de Deus é vista na tampa do propiciatório no Santo dos Santos; ele quer a presença manifestada de Deus em fogo; ele quer sacrificar, purificar-se; enfim, ele deseja ardentemente a Deus. A analogia que ele faz é da corsa, que em pleno deserto de sequidão e fastio, anseia, brama, suspira pela corrente das águas do ribeiro, pela vegetação de suas margens, e assim ele também, como adorador que é, anseia, brama, suspira, por Deus! Não pelas coisas de Deus, mas pela presença de Deus, por gostar de estar com Ele, de desejá-lo, acima de qualquer outra coisa que existe. O tempo urge, e ele pergunta: Quando (v.2)?

            Vamos então analisar nas páginas do Evangelho, que é o que realmente importa para nós, devido a uma revelação maior contida na encarnação do Verbo: Cristo Jesus. Se Jesus foi a revelação mais sublime de todas, como as pessoas que viram, ouviram, tocaram o Mestre da Vida, foram, de certa forma, impactadas pela sua mensagem, pelos seus atos e pelo seu toque. A partir desse encontro, elas nunca mais foram as mesmas.

Analisemos primeiramente o fato de como um religioso tinha dificuldade de entender o que Cristo estava falando a respeito do Reino. É notório que todas as classes religiosas existentes no primeiro século, tiveram mais embates do que concordâncias no trato com Jesus. Este precisou revelar-lhes a hipocrisia e o fingimento nas relações religiosas, e a falta de amor e empatia com a população ao redor. Isso vale para a seita dos fariseus, os saduceus, os escribas e doutores da Lei, a classe sacerdotal, os príncipes dos sacerdotes e o Sinédrio, e um distanciamento frio com outras classes sectárias mais radicais, como os essênios e os zelotes. Isso é facilmente identificado na escolha dos doze apóstolos. Não há sequer um religioso de carteirinha. Vemos pescadores, cobrador de impostos, e até um zelote (ou sicário, de sica, um tipo de punhal), uma espécie de homem-bomba do primeiro século, mas nem um religioso. Intrigante, não? Para não focarmos muito neste segmento, mas apenas para confirmar a premissa, vamos analisar a busca de um religioso judeu ilustre em sua época.

Gente religiosa (autossuficiente)

O fariseu, príncipe dos judeus, chamado Nicodemos (Jo 3.1-21)A Bíblia diz que Nicodemos foi ter com Jesus de noite, e só esse fato nos diz muito. Por que não de dia? Certamente para que não fosse visto por seus pares, por seus iguais, a classe farisaica. Por isso, foi na calada taciturna da noite, onde quase ninguém o veria. E Nicodemos chega até Jesus aparentemente com boas proposições e justificativas: “Rabi, bem sabemos que és mestre vindo de Deus, porque ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não for com ele” (Jo 3.2). A resposta de Jesus veio na contramão do que ele imaginava: “Sério que você está procurando sinais externos? Você procura ver, mas, na verdade, não consegue ver com clareza, porque para isso você precisa nascer de novo”. Então, a mente de Nicodemos entra em pane: “Não tem como eu entrar no ventre da minha mãe novamente”.

Jesus, então, fala da importância do nascimento espiritual, e compara esse tipo de nova criatura com o vento, que não sabemos de onde vem nem para onde vai. Nicodemos então confessa: “Como pode ser isso?” Jesus deve ter sorrido quando respondeu: “Você é mestre em Israel e não entende nada disso?” Nicodemos não conseguiu entender o nível da conversa da regeneração dos participantes do Reino. “Estou falando de coisas do Reino aqui (carnal). E se eu começar a falar do Reino de lá (espiritual)?”

Agora, vamos observar alguns exemplos de episódios onde pessoas não religiosas tiveram contato com Jesus, e entenderam dentro de suas limitações, que o poder de Deus e o próprio Deus estavam presentes entre eles, e que eles, de alguma forma, eram importantes no Reino.

Gente não religiosa (quebrada)

            A mulher samaritana (Jo 4.1-29)Jesus chama os seus discípulos para uma viagem até a Galileia. Só que para chegarem ao destino, se faz necessário passar por Samaria. Quando o grupo chega próximo a Sicar, Jesus manda os discípulos irem comprar comida, e fica descansando sob a cobertura de um poço no calor do sol do meio-dia. Logo aparece uma mulher, que foi nesse horário para não ser vista por ninguém, para não ser mais julgada do que já era. Jesus então puxa conversa: “Estou com sede. Pode me dar água?” A mulher parece se escandalizar com o pedido. Veio de um judeu, ela deve ter percebido pelas roupas, para alguém como ela. 1) Uma mulher; 2) Samaritana; 3) De reputação reprovável. “Você não devia estar falando comigo” – foi a reposta dela. Jesus então responde: “Se conhecesses quem é que te pede, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva”. A mulher é ríspida: “Não estou vendo corda e balde, e o poço é fundo. Vai tirar de onde essa água viva? Você por acaso é maior do que o nosso pai Jacó?” Pessoa difícil essa não?

            Jesus então, lhe diz: “Aquele que beber dessa água, voltará a ter sede, mas aquele que beber da água que eu lhe der NUNCA terá sede. Haverá uma fonte de água a jorrar para a vida eterna”. Então a mulher agora pede: “Senhor, dá-me dessa água”, Olha aí a sede manifestada! A mulher tinha sede de Deus e Jesus marcou em sua agenda o encontro com aquela mulher, naquele dia, naquela hora, a sua vida estava prestes a mudar. “Vá, chama o teu marido e vem cá”. A mulher então se emburrece: “Não tenho marido”. Jesus então lhe revela a sua vida, que ela já teve cinco maridos e o atual não lhe dá o nome. Ela se encanta e aproveita para fazer uma pergunta teológica para Jesus: “Onde (em Gerizim ou em Jerusalém) se deve adorar a Deus?” Jesus então abre a mente dela quando diz: “A hora vem e já chegou, que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade, porque o Pai procura a tais que assim o adorem”. Jesus está falando de coisas espirituais, e a mulher então diz que quando o Messias vier, Ele explicará tudo. Jesus, então, sussurra para ela: “Sou eu, que falo contigo”.

            A mulher deve ter arregalado os olhos. Ela compreendeu que Deus estava ali. A tal ponto que ela sai apressadamente, para contar ao povo da cidade, os mesmos que a julgavam e desprezavam, que o Messias estava entre eles. Ela deve ter trombado com os discípulos no caminho. A mulher deixa no chão o cântaro que tinha levado para pegar água. A sede material poderia esperar, porque a sede espiritual havia sido saciada. Deus havia se encontrado com ela e importava-se com ela. “Uma comida tenho para comer que vós não conheceis” – disse Jesus.“Faltam quatro meses para a colheita? Levantem os olhos e vejam as terras (e a mulher corria em direção à cidade) que já estão maduras para a colheita”. A mulher rejeitada transformou-se na primeira missionária que levou a cidade a se converter a Jesus, a ponto de dizerem: “Já não é pelo que disseste que nós cremos, porque nós mesmos o temos ouvido e sabemos que este é verdadeiramente o Cristo, o Salvador do mundo”. Ela entendeu, e não só isso. Entendendo, fez com que muitos entendessem sobre o caráter do Reino que estava entre eles, e sobre o Salvador desse Reino.

            A mulher sírio-fenícia (Mt 15.21-28) Jesus está outra vez passando, dessa feita pelas partes de Tiro e Sidom, quando foi interpelado por uma mulher sírio-fenícia, que morava nas cercanias, e começou a clamar (gritar): “Senhor, Filho de Davi, tem misericórdia de mim, que minha filha está miseravelmente endemonhiada”. Eu sempre achei que alguém possesso por espíritos do inferno teria chegado ao fundo do poço, mas essa mulher me ensina que o fundo é mais embaixo; miseravelmente endemonhiada é mais do que apenas endemonhiada. Situação terrível! E Jesus? A Bíblia diz que não lhe dirigiu palavra, nem sequer olhou para ela, a ponto de os discípulos pedirem: “Mestre, dispensa-a, pois vem gritando atrás de nós (já tá incomodando)”. Jesus, então, falou como que aleatoriamente: “Eu não fui enviado, senão às ovelhas perdidas da casa de Israel”. A mulher sabia o tamanho de seu problema, e não se deu por vencida: A Bíblia diz que ela o adorou (coisa linda seu reconhecimento), e disse: “Senhor, socorre-me!” Impressionante como a necessidade quebra o nosso orgulho.

            Jesus diz algo politicamente incorreto: “Não é bom pegar o pão dos filhos e deitá-lo aos cachorrinhos”. Sabe quando você percebe que é um religioso? Quando a fala de Jesus ofende. Digo isso, porque me ofendeu, ou me ofenderia. “Como assim, o sujeito vem à minha terra, ignora-me, e ainda me chama de cachorro?” Eu teria dado as costas e ido embora, porque sou religioso e acho que Deus deve agir apenas dentro da caixa da religião. Mas eu não tenho um problema insolúvel em casa para resolver como aquela mulher tinha. Ela então parece dizer: “Eu sei que não sou filha do Reino, e que o sangue de Abraão não corre nas minhas veias, mas eu sei o tamanho de meu aperto”. E conclui: “Sim, Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus senhores”. Olha aí a fome manifestada! Ela se humilhou a tal ponto, a fome era tanta, que ela se satisfazia com as migalhas do Reino debaixo da mesa! Então Jesus lhe disse: “Ó mulher, grande é a tua fé. Seja isso feito para contigo, como tu desejas”. Quando aquela mulher voltou para sua casa, encontrou sua filha sã, sentada e em pleno juízo. O milagre havia acontecido. Essa mulher entendeu que as migalhas do Reino de Deus são mais valiosas do que o banquete no reino do inimigo.

            O centurião de Cafarnaum (Mt 8.5-12)Para variar (só que não) Jesus está passando, desta vez, entrando em Cafarnaum, quando um grupo de anciãos vem ao seu encontro com um pedido de um centurião romano em prol de seu servo, que se encontra doente e moribundo (quase morrendo, só faltava a extrema-unção). Os anciãos rogaram muito a Jesus, diz a Bíblia, e disseram que era digno que Jesus concedesse essa cura, pois esse centurião amava a nação de Israel e havia construído a sinagoga de Cafarnaum com o dinheiro de seu próprio bolso. Jesus então se convenceu de que seria uma boa ideia e disse: “Eu irei e lhe darei saúde”. Até aqui nada demais, não é mesmo?

            No caminho, perto de chegar à casa daquele centurião, o grupo de Jesus é interpelado por um grupo de amigos do romano, com a seguinte observação: “Não se incomode de vir a minha casa, pois não sou digno de que entre debaixo do meu telhado. Diga apenas uma palavra e o meu criado sarará. Eu entendo de autoridade (centurião liderava cem homens). Eu digo a um: vai, e ele vai; e a outro eu digo: vem, e ele vem; e a meu servo: faça isso e ele faz”. Quando Jesus ouviu isso, Ele se maravilhou e disse à multidão que o seguia: “Digo-vos que nem ainda em Israel tenho achado tanta fé”. E Jesus conclui assim seu raciocínio: “Muitos virão do Oriente e do Ocidente e vão se assentar à mesa com Abraão, Isaque e Jacó, no Reino dos Céus”. Olha aí a sede e a fome manifestadas! Gente que não merece, mas tem sede de Deus; gente que não é religiosa, que não pertence ao povo escolhido, que não tem prerrogativas espirituais, mas tem fome de Deus; não das coisas de Deus ou de religião, mas do Ser e do caráter do próprio Deus! E quanto aos religiosos? “Os filhos do Reino serão lançados nas trevas exteriores; e ali haverá pranto e ranger de dentes”. Passou da hora de entendermos que a religião não salva ninguém. O Reino não diz respeito ao que fazemos para Ele e sim do que Ele já fez por nós!

Conclusão

            Não sei se notou, mas o religioso tem nome, e as pessoas quebradas que se encontraram com Jesus não nos é informado sequer seus nomes. Sabe por quê? A causa disto é para que a glória seja única e exclusivamente de Deus (Jesus). O Reino diz respeito a Ele e não a nós. “Somos mendigos espirituais dizendo a outros mendigos onde encontrar pão”, como Charles Spurgeon disse com razão. Não podemos nos perder em protocolos, sistemas e liturgias e nos esquecermos de nos comunicar com o sagrado, que é o mais importante. A pessoa de Deus, em vez dos métodos que dizem respeito a divindade. Deus se manifesta e se revela a pessoas, mas nós queremos priorizar métodos, em vez de falarmos diretamente com quem realmente importa.

            Sinceramente, achei que após a pandemia, na reabertura das igrejas, o povo estaria com tanta fome e sede de Deus que as igrejas ficariam lotadas e os cultos seriam espaços da presença notória do divino. Mas, infelizmente, isso não aconteceu. Os que voltaram (porque muitos ficaram pelo caminho), continuaram oferecendo cultos mornos, cheios de gente entediada, empanzinada e bocejantes na presença do sagrado, que não quer participar do banquete por estar com a barriga cheia de pipoca (atos religiosos). Pipoca enche, mas não nutre; empanzina, mas não tem vitaminas, dá sensação de saciedade, mas não alimenta de fato por muito tempo. Não dá para viver de pipoca! Assim como não dá para matar a sede tomando água do mar. Isso apenas lhe dará mais sede ainda, e levará o seu corpo a desidratação e à morte. A religião faz isso com as pessoas, mas Jesus promete vida, e vida verdadeira! O verdadeiro alimento que nutre a alma e dá saúde espiritual só vem do próprio Deus e da sua Palavra. Ele está disponível, mas quem está com fome ou sede para desejá-lo de verdade?

            O problema da igreja evangélica brasileira hoje é a falta de fome! Estamos empanzinados com muitas coisas, e esquecemo-nos do principal. Uma fome e uma sede que só Deus pode matar! Precisamos aprender com o salmista que quando a alma se perturba dentro de nós, somente Deus pode saciá-la (Sl 42.5). Precisamos aprender com o salmista a pedir apenas uma coisa a Deus e ao mesmo tempo buscá-la: Morar na Casa do Senhor para contemplar a sua formosura e aprender no seu Templo (Sl 27.4).Precisamos ainda aprender com o salmista que um dia nos átrios de Deus vale mais do que mil em outro lugar qualquer, a sermos como o pardal e a andorinha (Sl 84.3,10).

Precisamos aprender com o salmista a dizer, quando nos chamarem: “Alegrei-me quando me disseram: Vamos à Casa do Senhor” (Sl 122.1).Não com monotonia e bocejos, mas com entrega, porque Ele é Deus verdadeiro e não existe outro, e, por isso, merece todo louvor e adoração e o melhor de cada um de nós. Fome de Deus e sede de Deus, é o que precisamos!

Geisel de Paula